Momentos de Solidão

“Sempre assim. O mesmo trânsito todas as horas. A mesma loucura todos os dias. Não se para pra nada. Como queria parar um pouco, ouvir pessoas, conhecer, saber das pessoas, loucos bêbados prostitutas que ora vejo pelo retrovisor, ora quase atropelo no semáforo que fecha para uns a dar passagem a outros. Nem me vêem; não sei. Essa Av. Rio Branco dos pontos de tudo. Que saco! – e esse farol que não abre. Vou chegar atrasada. Sempre assim. Não sabem de mim. Nada de mim, Suzana”.

Noites de tesão vividas em comum.

Suzana, em sua casa de praia, céu e areia, tinha pudores nunca contestados. Mas, tinha, é um verbo no passado. Nem antes, nem depois. Suzana amava Suzana.

Vinte e três anos, loira, belíssima, verdes olhos na face morenada, tão gostosa vestida, quanto pelada ou nua – pois, não tanto faz, por ser diferente.

Tardes de verão vividas em comum.

Suzana sorria lábios e dentes; como brilhantes raios de sol-mel-nuvem; o mais lindo doce e leve sorriso, Suzana entregava para Suzana;... sorriam-se mútuas e excitadas. Sempre assim. Despiam-se apenas em vice-versa. As roupas escorregavam entre o enroscar de corpos de Suzana até Suzana; o contato pele macia, gostosa, cheirosa; perfume de fêmeas solto no ar. Soltas no mar. Ventres úmidos num orgasmo único.

Quinze minutos de sol aberto e areia quente a traspassar calor pela esteira, tornou convidativo um banho refrescante: - “Vamos nadar?”.

Acompanhando um meneio de cabeça um sorriso de consentimento – Suzana com mais um daqueles fantásticos sorrisos; fantásticos por sempre despontarem como num passe de mágica; deveras iluminado, diga-se de passagem once more; resplandecendo imprevisíveis significados puros, de desejo., todos os sorrisos de Suzana e por sua vez cada um, demonstravam nitidamente algum desejo, e eram milhões de desejos diferentes; cada sorriso era um (ou mais) desejo(s).

Estar anelando tanto sobre os sorrisos de Suzana, motivos existem de sobra. Um: porque são incríveis todo mundo merecia ver-conhecer (não somos egoístas e tenho certeza que desatomizaria a máscara de muitos – se não de todos – já disse: mágicos). Outro é, com irremediável ligação ao motivo anterior, eu ter uma pequena tara por sorrisos e os dela, em especial. Não há dúvidas de que a ligação nada tem a ver com a tara e sim com análise de sorrisos. Veja: como os do cretino do meu chefe a me passar cantadas indecorosas junto com um imenso calhamaço de trabalhos para “datilografar-revisar, redatilografar-distribuir, preencher-agendar” e querer me comer no fim do expediente com aquela cara de porco imundo. Desses sorrisos enojantes, que muitas mulheres são atacadas. Esses, por exemplo, entre inúmeros, facínoras. Indignante demais. As profissionais que se cuidem e as feministas que dêem uma força porque é muito pra cabeça. Mas é deixar isso pra lá apenas como exemplo mesmo e dizer um terceiro motivo o qual levou essa narrativa à parte. Podem dizer que “pra quem gosta de sorrisos é um prato feito”. Eu continuo com o Brás Cubas e sua Idéia Fixa, capítulo quatro, primeiro parágrafo, Machado de Assis; e o mais alto apoio aos sorrisos de qualidade.

Deliciosa violação para meus olhos o sorriso de consentimento de Suzana: doce malandro jeitinho infantil de criança comendo doce, me lambuzou. Doce muito doce nunca demais. – nos levou a correr de mãos dadas pela praia e mergulharmos, sensíveis, no mar. Emergir e ver o corpo molhado de Suzana, olhos fechados, respiração ofegante, entregues ao vento, brando, insinuante. Abracei-a. Beijei-a leve e acentuadamente, indo além; com minha boca em sua língua; lambendo-a e ao céu da boca, mordendo seus lábios carmins... Íamos ficando loucas-aflitas de desejo. Apertei Suzana ao meu corpo. Mais e mais. Suzana me amava. Sentia. Frêmitas, vibrávamos. Observei Suzana a flutuar na água, livre. Seu semblante, leve-bruma-sombra-mistério, não me permitia afastar, o olhar. Minha excitação crescia a cada toque-momento nessa cúmplice proximidade que me carregava os poros de uma sensualidadenergia, tesura incontrolável. Eu a beijava toda. A imobilidade de Suzana me enlouquecia mais. Apenas o rosto se metamorfoseando de instantes lúcidos em ilúcidos êxtases. Aquela imobilidade de prazer em que se entrega tudo o que é receber. Me enlouquece amar assim. Me tornar amor.

Nadamos até uma ponta da praia; lugar deserto. Ótimo (ainda) existirem praias desertas a nos possibilitar esses momentos, esquivos, mas de liberdade. Excelente. Pena que sejam poucas e essas poucas nem sempre estão assim. Sempre assim.

Deitamos sobre as pedras. Ondas estouravam permanentemente, respingavam em nossos corpos. O pôr do sol, por sua vez, incidia raios avermelhados sobre a nossa pele. Compassadamente sol e água sucediam-se pungindo e mantendo arrepios e gemidos de excitação como intermináveis... Suzana me abraçando, me beijando os seios, me mordendo as pernas numa suavidade estonteante, me lambendo o rosto, o pescoço, percorrendo mãos e boca por todo meu corpo, me chupando cuidadosa, chupando como sorvete, sem perder uma gota, num frenesi frenético-louco, de orgasmos sobre orgasmos, num suceder recíproco. Gozamos muito, diversas vezes. Sempre assim.

Minha respiração entrecortada, eu balbuciava baixinho:

“- Sinto o gosto do seu corpo na minha boca”.

“- Sinto o gosto do meu corpo na sua boca”., dizia ela, ofegante, em meus ouvidos, num gozo ininterrupto ainda.

Ah! Sabores inesquecíveis dos fins de semana.

Coração batendo, disparado, corpo sobre corpo.

Quase adormecemos ali, nuas.

Crepúsculo caindo suntuoso. Estrelas povoando mar, céu e areia, numa confundível cintilação com a do prazer nas pupilas. Vestir as roupas e caminhar, sem pressa, em direção a casa.

Fitarmo-nos com olhos de lembrança; o dia, a noite, a rebelião interior, amotinada dentro pelo day after day corrosivo das doenças chamadas cotidiano e sistemas sociais. É; um olhar leva a outro.

Um banho morno juntas, viver mais algumas adoráveis carícias mútuas no ensaboar nossos corpos, brincar de ensinar pés e mãos a massagear tudo, não esquecer de nada que ali nos permitisse relaxar. Novo aquecer de peles, por uma única toalha a nos selar o calor de um beijo de corpos. A isso se chama beijo integral tal qual naturalistas. Venhamos e convenhamos and after um jantar preparado por Suzana (esta duplicidade chega a me confundir jocosa, mais que uma propaganda de cigarros: ela, sou eu; ela, não sou eu).

Arranjei a mesa no jardim e jantamos sob luz de lua e estrelas. Ríamos muito, feito crianças. Felizes. Um delicioso peixe à francesa regado por brindes de Chateau Margaux. Obra-prima do jantar de Suzana. Como deitar na cama, comigo...

Conheço todos os arrepios de Suzana. Suzana conhece todos os meus. Há cinco verões estamos juntas. O mesmo tempo em primaveras, outonos, invernos. Adormecemos abraçadas, muito leves, como a perder os traços de cansaço pela euforia dos nossos momentos fugidios. Sempre assim. (Até quando??).

Mesa de escritório e o acordar de tudo.

Papéis desordenados, jogados sobre ela.

Papéis desordenadamente distribuídos na Av. Rio Branco.

Loucos bêbados comerciantes prostitutas.

Ninguém sabe de mim. Sempre assim.

Penso em Suzana. Seis horas da tarde; quase noite, e esse trânsito.


(1983)

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