DURMA COM ESTE BARULHO

Pontualmente isso: 4 de abril de 1979.

E me fechou o tempo nesse mês de abril. Muito!.. pra tudo!

Em alguma hora da madrugada (sei que me encontrava), acordada – como em sobressalto –, preocupadíssima com o Senhor Tempo – mas não me dignei a levantar para olhar o relógio. Resolvi continuar dormindo.. (por bem) (para o meu próprio bem...).

Faltando poucos minutos – mais ou menos exatamente dez – para as 6 horas desta tal não sei se bela manhã deste digníssimo dia 4 do mês 4 deste ano internacional da criança – a que me referi antes (e continuarei referindo); FUI ACORDADA para ir iniciar uma nova! bela! e! esplêndida! jornada!!!. – Ainda não sei bem pra quem a dita cuja tem todas estas qualificações apresentadas, mas é o que dizem: Meu primeiro dia como nova, como recém, como chegada, como o que quem quiser(em), mas funcionária do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, ou seja, SENAI,...

Arrumo-me o mais rápido possível que é possível dentro de dez minutos, engulo um copo de café quase me afogando, quase me sufocotosseengasgando – (claro! que falo do conteúdo... (do que é capaz a força de expressão)) – – (nessa hora, não sei porquê – porque nunca sei dos porquês – lembrei-me de você Gregório) –, e saio voando a pé ao meu primeiro destino que me levará ao próximo destino que me levará ao destino mais distante a que necessariamente me destino ir; ou seja, enfrentar uma fila – pois que fila só se encara assim –, no ponto inicial – que é um ‘double face’, que inicial ou final “c’est la même chose”, que o raio que a parta em português, pois é um inferno de pessoas se enfileirando, engavetando, pagando imposto, tributos e o diabo a centoecinquenta que a quatro já não satisfaz, numa borboleta que não sai do lugar e que é comandada, usada, sabotada, eticeterada e tal, por um geralmente imbecil que ganha salário-mínimo – prova mais concreta que essa impossível. Alô! Sim.,. mas como eu ia dizendo; no ponto inicial de um ônibus do bairro qualquer que moro, para me levar ao ponto inicial de outro; de outro bairro, que de frutífero só tem o nome (e as mais decentes concessões que me são de direito me permitem omitir); e me, por fim, largar num ponto que será o meu, final?, meu final?; final?; – meu?; – pelo jeito já é claro que me tornou obscuro esse final e afinal já não sei mais se o problema é com a vírgula, comigo, com o final, ou com o ponto, com o ponto final, com o ponto de ônibus que não é final dele e é a única coisa que tenho certeza, pois me informei com o fiscal da compania e não estou a fim de duvidar do cujo (é dessas certezas que chamo de crédito tanto faz ou confiança sem importância); e ao que consta nos péssimos, mas artigos deles, o percurso ainda vai longe e se eu não parar nesse ponto vou mais longe também e passarei? ou passaria do meu destino e teria que tomar outro ônibus para voltar – já não sei mais onde.

Bem: dois pontos: Acontece que... Não se preocupem; não vai ser difícil entender; é que eu gosto... das minúcias. Afinal, são importantes: O que seria dos detetives (particulares ou não) sem elas? Tudo tem utilidade. Assim como as meias foram feitas para os pés, o papel pra borrar, as mãos como o Bom-Bril, limpando quase tudo, as mães com o ventre livre às vezes ocupado... Que seria das lojas de cobertores, agasalhos e similares, se não fosse o frio batendo às portas, de São Paulo for exemple – hein? que seria se não fosse o frio? – também usado como bode expiatório; espectro capitalista (ai se eu descubro quem está por trás dele enchendo o cu de l‘argent – bem por trás – ai s’eu descubro esse(s) cretino(s) parasita(s) – como já dizia, amigo meu: “frio, caputapitalista é que pariu; verão dá tesão, pouca roupa sob a pele, mais anatoeconômico, menos repressão física, movimentação)..., o que seria dos dentistas sem as dores de dentes dos seus clientes? (dá pra sacar que essa classe de profissionais precisa da sua dor não dá? Eles adoram a sua dor: dor igual a cifrão nas pupilas-máquinas-registradoras – ainda mais nos terríveis dias de hoje onde o dinheiro não dá pra nada pra todo mundo (até os bastardos abastados reclamam! sem exceção)) – pode ser claro que exista os não-cretinos, minoria estatística confirmada no CPCs (Conheça pela Cara e Confirme); etc. etc. e assim por diante e cuidado. Até, como se pode observar, os etceteras são úteis...

Mas eu ia dizendo; aliás, ia querendo dizer, que ao descer do Lotação, a dama – apesar de ser uma na real vida irreal (vice-versa) –, torceu o pé esquerdo – apesar de ter certeza de ter levantado com o pé direito. São um verdadeiro problema os altos degraus (ou degraus altos?). Principalmente quando existem abismos no asfalto. É galgar errado, pisar em falso, e... “dançar”; para nunca mais dançar. E, sabe? nem cheguei a cair..., contornei meu peso aos trambiques até onde foi possível frear, ou seja, aliei-me à parede mais próxima; e, após alguns segundos de reflexão, desvencilhei-me da aliada e prossegui meu percurso andando normalmente até o ponto de ônibus onde uma nova e enorme fila me esperava, se assim posso dizer. Pacientemente aos xingos, me ponho a esperar à boa vontade do motorista, à sua mercê e à mercê do cobrador também, é claro, para entrar pagar pegar ou largar o adorável condução lata de piaba que a esta altura dos acontecimentos qualquer peixe me servia.

Tomo, do verbo entrar, esse outro ônibus que me levará até à Av. Paulista, onde começarei a labuta que passará a ser diária. Argh (argh é ótimo. Bah.).

Very Well. Afinal, dentro do ônibus e em movimento – todo possível no trânsito –, seguimos, eu e milhões de pessoas amontoadas num agradável papo sobre as mais frescas das mais frescas notícias que vêm escaldantes nos jornais, rádios, tevês e bocas-a-bocas ou telefones a telefones e que assim vai para nunca mais parar; e também revendo velhos conhecidos – que amigos à uma hora dessas já é “muito” –, trazendo novas notícias, às vezes algumas já velhas, de velhos companheiros de colégio: que o Cuíca não toca mais, que o Manuel está no Brasil, o Montanaro vai pra Argentina, que a outra sumiu, que o Justo faliu e a puta que o pariu e ainda estamos vivos e alguns já se foram infeliz ou felizmente...

Meu ponto, que não me pertence, se aproxima (ou será diferente?), e eu desço do ônibus logo após ter puxado aquela cordinha, aquela sabe? que quase nunca funciona? – e foi o que aconteceu. Episódio comum de tão rotineiro (comum de dois), motivador de xingações, entre gratuitas e não, entre um estridente “eu dei sinal, você é surdo” do passageiro, e o “você não deu” do motorista, também aos berros, acompanhado de um “vá reclamar na compania”, sem resultados eficientes. E entre esses entres, desço eu logo do ônibus, antes dum outdoor azarão me bordar de mau gosto nos olhos um “já vi que não é o meu dia”. E aí vai vendo: junte-se ao descer, o dar de cara com a minha paciência quase perdida tendo que atravessar a Av. Paulista (me parecia que os faróis, todos, gargalhavam cínicos num dizer “isto é só o começo mocinha” “obedeça-nos e não morrerás atropelada” “vamos emputecê-la everyday”) (será que eu me perguntava que mal eu tinha lhes feito? Creio que não. Sei que não tinha feito. Inimigos gratuitos chovem por aí.).

Eram 7 horas e 30 minutos quando cheguei ao hall do prédio e, como só podia entrar às 8 horas (e isso depois de preencher uma fichinha e deixá-la na portaria com a carteira de identidade anexa e ainda prender na roupa um crachá de visitante); saí e fui tomar, do verbo beber, alguma coisa. Agora imagina eu, entrando num desses bares superlotados de pessoas que a essa hora lá estão para tomar, do verbo engolir, o tão viciado cafezinho e eu pedindo soda-limonada ao garção de forma a dar a impressão de conter uma tremenda ressaca – senti isto pela forma com que me observavam: quase todos mantinham o destinto olhar sobre a minha pessoa como se fosse “indistinta”. Devem ter me colocado um mau-olhado pluralificado. Enquanto isso mil pensamentos passeavam, desfilavam, rolavam, rodavam, dançavam em minha cabeça, entre goles e a resolução de pedir uma empada e a conta. Ah! Sim. É fato que tive de suportar e enfrentar – como um passe de metrô ida e volta – a Av. Paulista e seus semáforos. Que sina paulistana, uff!.

E lá fui eu, terminada as chatices formais da portaria: 10º andar, 8 horas, conversando com uma chefe de um Departamento Pessoal impessoal, participando (pois que tive, não havia outro meio) de um papo totalmente burocrático, cheio de requisitos preenchidos e vagos, elevadorando de andar em andar, para fazer isso no 8º, pegar aquilo no 3º, entregar aquilo outro no 7º, preencher não sei o quê no 12º, assinar não sei o que mais lá no 5º, devolver no 4º e encher o saco até não mais caber. Apesar de tudo isso – ou com tudo isso e muito mais – até que eu estava levando na esportiva...

Conheci a minha sala e a minha mesa (como disseram) (e sem nenhum prazer nas apresentações). Situam-se no 6º andar num lugar arejado (ou melhor: condicionadamente frio), com música ambiente descondizendo mais do que condizendo com o ambiente, uma sala enorme da qual passei, sem contentamento nenhum, a fazer parte integrante com mais três – diria – garotas: Uma delas – Rosana – a entrar de licença para cometer um ato ... cerimonial (com um outro ato, evidente, menos cerimonial já cometido – 5 meses por aí), ou seja, casar. Tanto esta como Regina, estudante de direito, tinham a cara não tão desprezível quanto o reflexo da sua pessoa (graças ao CPCs vivo me prevenindo das megeras – ele é infalível). E Níria, fazendo Pedagogia; não como as outras, foi simpática (o CPCs me informou que era nobre de bons sentimentos e que seríamos amigas) e me deu um leve trabalho: não consigo aprender seu nome. Nária, Néria, Naría, Naraia, Nória e não consigo. Tive que escrever o nome na mesa pois trocava toda hora. Níria está associada à minha mesa. Espero que ela não ache ruim.

Well, com a last stop no 6º andar e a cabeça meia perambulando, trabalhei um pouco em meio a papéis amotinados frente a uma doida IBM que disparava de quando em quando um mooooooooonte de letras em repeteco.

Transcorridas quase quatro horas de burocracia dar-se-ia o sinal de meio-dia; iríamos almoçar, não sem antes descer ao 5º ou subir ao 7º para picar cartão! Ah! Obra do demo: pica para entrar às 8hs., pica pra sair ao meio-dia, pica quando retorna do almoço e pica quando sai às 18hs (nem numa suruba se teria tanto trabalho). E tinha fila também pra isso e só uma hora de almoço e pelo menos 5 minutos desta hora aí eram perdidos. Mais dez minutos pelo menos também para aguardar um entre 4 elevadores que não estivesse abarrotado de funcionários famintos. No elevador então, para minha surpresa (desagradável, como segue), encontrei uma pessoa que eu conheci há alguns anos e nos últimos tempos nos desconhecíamos. Nos vimos como se não tivéssemos nos visto. Ignoramo-nos à meia distância. Nada empolgante, marcante ou chocante. Foi uma surpresa indiferente, se é que existem surpresas assim. Pra mim foi a primeira do tipo.

Décimo oitavo andar. Claro que as filas não terminavam no cartão de ponto. Eu deveria ter desconfiado. Fila pra entregar o vale de almoço para poder entrar no refeitório. Uma vez dentro, fila pra pegar bandeja e talheres e acessórios comestíveis. Se não fosse um tanto farta a distribuição desses acessórios comestíveis eu podia jurar que estava numa cadeia ou que era uma refugiada Cambodjana ou Vietnamita ou qualquer outra, num auge-clímax de delírio, esmolando as contribuições do Comitê de Ajuda Internacional em Prol de Pobres-Coitados. Sensação horrorosa esta.

Subir num mirante qualquer e procurar uma mesa, que tivesse entre as 4, pelo menos UMA, cadeira para sentar e almoçar. Pelo menos uma apesar de a idéia de almoçar acompanhada de mais três desconhecidos que se revezavam em quatro, cinco, me ser engasgante; de embrulhar em antecipado o estômago. Consegui dois lugares e almocei com Níria (ainda bem).

Pelo mais, a comida do refeitório neste dia foi agradável. Depois traguei da bebida amarga. Só podia: esqueci de pôr açúcar... (o que nos faz o costume... ou o mau costume, a bem dizer?).

Na seqüência, um quase esquecer de picar o maldito cartão (“dá repreensão, falta, suspensão, advertência” e o caralho; avisaram, esqueceu azar seu).

Do refeitório a então picar aquela porra e chegar na sala de trabalho começou a doer lastimavelmente o meu querido pé torcido naquele lamentável descer do ônibus. Comecei a mancar sem “dar mancadas” como manda o verbete giriológico, mas ainda estava agüentando andar. Fui até ao toilette “naquela base” pois a dor aumentava gradativamente; olhava no espelho e não sabia o quê fazer.

Voltei à sala, sentei na minha mesa (que me perdoem os adjetivos de posse sem maiores propósitos), quase desmaiando de dor, quase ao ponto de gritar desesperadamente de dor não fossem as forças a já não existirem... O que é que eu iria fazer?

Não sabia se chorava ou se ria, se falava ou gritava... A situação para mim era inédita e ‘très’ cômica. Era o meu primeiro dia de trabalho, não havia comentado o incidente acidente com ninguém a quem pudesse interessar mesmo porquê, o meu querido pé, torcido naquela imbecil, estúpida e idiota manobra de descer o degrau do ônibus e pisar em falso graças às “minúsculas” concavidades que existem no asfalto cuja profundidade quase nunca ultrapassa a 100 centímetros (esses buracos que as prefeituras dizem que tapam com o dinheiro dos mil e um impostos que a gente paga); não doeu e não estava doendo até às 13 horas e quase 30 minutos; daí em diante... ai ai ai... comecei a suar frio.

O quê fazer? O quê fazer? Tinha eu essa pergunta martelando entre os dentes. O quê fazer? O quê fazer? O pescoço numa série de meias-voltas buscando e rebuscando uma resposta, uma solução urgente, meus olhos ansiavam aos quatro cantos (eram muuito mais cantos), mudos me afligindo mais. Eu estava pirando de dor. Que fazer? Que fazer meu Deus?, esfregando as mãos no rosto com os olhos contraídos e desesperados.

Foi quando entrou na sala uma das chatas que trabalhavam comigo, se aproximando de mim, puxando uma cadeira e sentando, num falso ímpeto de perguntar se tudo estava bem, se eu estava gostando do trabalho, o que eu achei do almoço e um outro tanto de perguntas frívolas e cretinas enquanto fazia tricô. Como eu não respondesse a nenhuma das perguntas e esta não havia sequer me dirigido o olhar enquanto as formulava, mirou-me com um sorriso inóspito ao qual quisera eu poder retribuir da mesma forma, mas me era impossível. Com muito esforço pude dizer que “tudo bem com a refeição” mas que eu estava com um problema ali, imediato e expliquei a situação sem grandes parâmetros e uma dor absurda. A filha-de-uma-boa vagarosamente foi ao telefone, ligou para o ambulatório, não sem antes bater mais um papo frívolo com a telefonista e outro com a recepcionista do médico, a qual, como ele não se encontrava no momento pediu que aguardasse...

Bem, eu não conseguia dar um passo sequer; e ou me apoiava onde desse jeito para me manter mais ou menos erguida ou alguém me carregaria. As faces: eu estava conseguindo mantê-las: pálidas e contorcidas – eu necessitava de uma fisionomia.

No corredor dos elevadores, aguardávamos a chegada de um, o que não tardou a acontecer; e, uma gentilíssima e agradável ascensorista automática nos abriu porta e sorrisos ajudando a outra a me carregar e foi cedendo sua mini-acomodação interior do casulo de aço, para que eu sentasse. Antes indagar o que estava se passando; ao que, debilitada, respondi meio em pilhéria “estar com o coração partindo de dor”.

Para rir, todas ríamos; eu, simplesmente conciliava o riso com o choro no mesmo instante.

Chegando ao andar do ambulatório, o porteiro gentil (este parecia ser por naturalidade) e prestativo, também me escorou até onde eu pudesse sentar. Foi até o ambulatório a passos rápidos, buscar uma cadeira de rodas... Eu não acreditei... não, não podia ser verdade...

Imaginem eu, no primeiro dia de serviço, sendo levada de cadeira de rodas até o tal ambulatório da firma, percorrendo um pátio imenso a que 20 andares do prédio, ou sejam, todos; tinham acesso visual; sendo que um mínimo de mil pessoas podiam estar me assistindo... Senti-me um ignóbil alvo de atenções; uma forte concorrente ao programa Sílvio Santos em sua audiência; senti-me aerofotografada; procurei esconder meu rosto como um – taxado – bandido faz ao aparecer num vídeo. Senti-me irrisória. Entre rir e chorar eu não tinha preferência ou escolha; me vi obrigada a manter ambas expressões...

Depois de percorrer o tal pátio que parecia nunca mais terminar, onde a linha do horizonte se perdia e se encontrava com a minha fatídica dor e situação, cheguei, ou melhor, chegamos eu e o porteiro e uma das megeras, ao ambulatório. Nem pestanejei e já estava sendo carregada de “colinho” pelo – mais um simpático entre aspas – enfermeiro, que me levou até uma cama, eu quase desfalecendo, e a atendente do médico, caminhando logo atrás de nós dizendo quase numa indagação estupefata e ridícula: - “Mas essa menina entrou outro dia pra trabalhar e já...” Eu a interrompi nem sei como, nem sei como (Pois além da dor ininterrupta a me corroer e me deixar aérea, eu precisava manter – pelo menos – um pé no chão e, ainda, observar a cara de tirador de casquinha do enfermeiro a me carregar, atento às protuberâncias e entranhas macias à flor da pele (minha, claro) as quais eu entre alucinada e desfalecida de dor também deveria ficar alerta e me proteger do sacana (há algo de muito similar entre enfermeiros e dentistas) (Maior falta de respeito, maior falta de respeito) (Enfermeiro devia ser homossexual. Seria uma preocupação a menos. As mulheres são atacadas por todos os lados; esses crápulas chamados homens não dão um tempo sequer pra cabeça; todos doentes maníacos sexuais... Não dão um tempo). Nem sei como a interrompi; um olho nele, fuzilando de raiva; outro esbugalhado no suportar o mal que me afligia, e um terceiro olho, que eu me emprestei como se fosse a terceira visão do Rampa ou o olho do cu de algum travestido, para estuporar a estupefação cretina daquela mulherzinha de voz – voz não, ganido – estridente com sua observação idiota e responder cínica, bem cínica: - “Esse outro dia a que a senhora se referiu, eu apenas me apresentei aqui para fazer o exame médico. Estou entrando Hoje. Uns acham que bem, outros, mal”.

Claro. Sem dúvida. Como se nem percebessem toda a minha trágironia, se gargalhou pelo ambulatório. Todos os que lá se encontravam entre idiotas, maníacos e até alguns doentes simulados e não, que nem sabiam o que estava se passando; mas riam (rir é bom. rir faz bem pro fígado. rir é o melhor remédio). Tipo, riam num aproveitar a deixa.

A essa altura eu já estava no meu delírio total. Ainda tive forças para ver o médico chegando e como um profissional, me examinar. Eu aflita e todos curiosos – porque tinham os que pensavam que eu nada tinha, que era uma farsa, que eu estava blefando, entre cochichos da megera pra atendente, da atendente pro enfermeiro, pro porteiro, pra ascensorista que havia largado o seu posto na tuba de ferro pra matar a curiosidade – nisso ela não era de ferro -, e dúzias de pessoas que se revezavam naquele quarto cubículo – desceu o 6º andar em peso nesse troca-troca -, esperamos o veredicto: - “Gesso. Encaminhe ao Pronto Socorro”. Ninguém acreditou.

Telefonou-se ao Departamento Pessoal pedindo meus documentos explicando o ocorrido e que eu teria de ir para um P.S. ...

O Departamento Pessoal não acreditou também, e avisou que: “eu não estava registrada ainda, que os documentos iam ser preparados e patati e patatá o que levou mais ou menos umas duas horas”.

Enquanto isso, eu gemia e chorava de dor e rindo de “Não Acredito”, esporadicamente.

Bem mais pra cafajeste do que pra qualquer outra coisa, o enfermeiro entrou no quarto e disse: - “Vamos tomar uma injeçãozinha para passar a dor? Vamos?” Isto já com a seringa na mão mostrando, que era óbvio, que eu, mais uma vez, não tinha alternativa. Ao que pude corrigir o “vamos” dele em tom sarcástico num retorquir em ré médio/zó bemol: - “O Senhor também está com dor?” Ao que ele nem deu ouvidos; e começou a aplicar não sem perguntar, cínico, once more: - “Está doendo?” Ao que eu balbuciei a meio tom: - “O pé”. Passado um segundo doía o braço também. Terrível. Aí, metralhei pro assassino né?: - “Aaaaaaaaaai. Aplica outra injeção para passar a dor da injeção que você deu para passar a dor do pé. Tá doendo tudo agora”. Ele até se assustou, mas não perdeu aquela pateta passividade e disse um “já já passa, calma”. Oh! Pulhas me atormentando o caminho! Estou!! Cheia!! Desses. Fim aos pulhas! Sei que esse “já já” custou a passar.

E como eu tive que tirar a roupa, ou melhor, ficar seminua para aplicar a injeção, como se era de deduzir; terminando de injetar, ao colocar-me a camisa, o enfermeiro abotoou errado sabe?, como os bêbados abotoam as roupas; assim eu estava, e só percebi, quando entrei, carregada por ele, no táxi, e o motorista não tirava os olhos de mim a observar certa parte do meu corpo, exposta... Nunca passei tanto vexame em toda a minha vida. Mas o quê fazer? Dar de ombros a esta altura era o mais conveniente. A dor já havia passado quase que por completo, não fosse o táxi a chacoalhar tanto. Os documentos tinham ficado em ordem e fui encaminhada ao pronto socorro como Acidente de Trabalho, ou para ser mais precisa, Acidente de Percurso.

Pronto Socorro de Fraturas da Lapa. Esperamos.

(advinha quem me acompanhou até lá? A atendente-cara-de- pata-choca).

Feita a ficha o médico atendeu e encaminhou ao Raio X. Pouca coisa mudou no novo veredicto – “Gesso mesmo e três dias de descanso”.

Consegui ser uma heroína:-

O primeiro caso da firma de no primeiro dia de trabalho, o funcionário pegar uma licença por Acidente de Trabalho.

Fora isso, a família vai bem obrigado, os amigos, preocupados, telefonaram pensando num possível suicídio como alarme falso e eu comemorarei 21 anos tirando o peso.

Não da consciência.

Do pé; o que já é alguma coisa...


(1979)

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